janeiro 18, 2018

É PRECISO CORAGEM!

Por: Ligia Prieto.


A vida, o tempo inteiro, nos coloca à prova, à prova de nós mesmos. Ser uma diretora jovem de um grupo de teatro jovem é um desafio. A solidão insiste o tempo inteiro. O mês de dezembro foi cheio de desafios pessoais e artísticos para todos do Grupo Casa. Todos os meses são, mas esse foi o final de um ano. Precisávamos finalizar contas, organizar vidas, viagens, descanso, os projetos novos, a organização de todo o ano de 2018, entre outras coisas. Eu sempre estou resolvendo coisas. Dentro da cena, fora da cena, na cama, no banheiro, no chuveiro, na rua, com os outros, comigo mesmo, é muitas vezes insuportável. “Eu sou uma atriz, eu preciso de inspiração”, além disso, sou diretora de um grupo de teatro.

Muitas dúvidas de como prosseguir, qual caminho tomar, os focos de energia, tudo precisa ser absolutamente calculado dentro do caos diário, mensal, anual. Já vamos completar 4 anos. De muito trabalho, de muita loucura, de muita correria, de muito amor, amor e amor, só por amor e pela necessidade de viver. Neste último ano, tivemos uma média de 200 apresentações. Com os alunos, fizemos 2 festivais adultos, 1 festival infantil, 2 apresentações infantis fora de época, 3 apresentações adultas fora de época, oficinas extras, aulões gratuitos etc. A gente não se cansa. Mentira. A gente se cansa. É muito cansativo, mas muito prazeroso. E eu estou exausta. 

Eu sou a que monta as grades, a agenda, os eventos, vende os espetáculos, define os dias, as horas, os minutos de todos, estou em cena, corrijo todos os textos, desde a dramaturgia até os textos individuais, oriento as aulas, escolhos as comidas, faço as compras do mês, pago todo mundo, cuido do dinheiro, e esqueço de beber água. Mesmo com tanta coisa só pra mim, todo mundo tem uma lista de atividades, escrita e definida por mim com cada um, no final das contas, todos estamos juntos. Sempre o coletivo. O coletivo te faz diariamente abandonar suas vaidades. Entender o todo. Dói. Sou mulher, tenho 30 anos, e trabalho diariamente com teatro, com ideias, com criação, com dor, com amor, com gente, com atores excêntricos, com pessoas que são por muitas vezes mais velhas que eu. Sempre existe um olho torto, uma dúvida dos que não me conhecem. Mas a dor vem quando os de casa se entortam, duvidam, por mil questões individuais, é preciso enfrentar, reestabelecer as regras do jogo, reinventar-se. Cada um tem um mundo dentro de si. Enfrentar a si mesmo, ir além dos limites. Entender onde você termina e onde começa o outro. O teatro é aprendizado diário, crescimento constante, medo, dor, alegria, emoção pura.

Me emociono ao ver a vida de cada um. O caminho crescente que cada um teve e tem. As conquistas artísticas e pessoais de cada um. Esse mês de dezembro foi especial. O Fernando, meu parceiro na vida e na direção de tudo, tem 43 anos e surfa o tempo inteiro como se estivesse no mar, é generoso e impaciente, e ama todo mundo como se fossem seus próprios filhos, se faz de durão mas se emociona, assim como eu, com o crescimento de cada um, e então a gente vibra, vendo de perto esses artistas se desenvolvendo. Afinal escolhemos a dedo cada um que hoje faz parte do Grupo Casa. Tivemos sorte, poucos foram os desistentes do caminho. O Febraro inventa uma dor a cada dia, e vai pra cima da cena e das aulas das crianças como se amanhã já não existisse. Finalizou o ano das crianças com muita dignidade, como se fizesse isso há 30 anos. O Samuel se enfrentou, se debateu, se encontrou, se perdeu, e na última reunião do mês disse que a única coisa que queria fazer na vida era teatro até o fim, não temos escolhas, a vida que manda. Roberto pela primeira vez enfrentou um público surdo, se debateu, se descobriu, entendeu que a linguagem afasta e aproxima, salva e mata, é preciso tempo pra crescer um degrau de cada vez. Vini não sabia que os números eram tão positivos, e me disse a frase do ano em dezembro “tudo vira cena, tudo vira número, tudo vira teatro”, e por isso precisamos nos defender, nos cuidar, nos proteger, para podermos criar e continuar. Kelly escreveu seu primeiro texto completo no mês de dezembro de 2017, e foi o melhor texto do mês, um passo de cada vez, loira, até o mundo ter forma e domínio. Gabriel sempre se perde e se acha no meio do caminho, ele disse que precisava ficar uns dias com a vó dele pra lembrar de quem ele era, pensei: "como ele era capaz de se esquecer". Quando ele entrou na ciame perguntou porque eu tinha o convidado, e eu disse que era por causa do coração dele. No mês de dezembro ele criou coisas, uma árvore de natal torta que no final das contas ficou linda e fez toda a diferença. Ele também fez aniversário no mês de dezembro, e estávamos com ele comemorando em São Paulo, molhados, na chuva, comendo empanadas e tomando vinho. Thaisa faz tudo o que for preciso, ficamos com ela no mês de dezembro somente 15 dias, mas está diretamente ligada a mim, durante as férias só quem trabalha sou eu e ela. O João é um chato, e voa, cresce a cada instante, da formalidade da sua relação com o piano, para o treino do coral, para a sanfona, o violão, todos os instrumentos do mundo. Na última reunião ele ficou fazendo barulho igual a todas as outras reuniões, e ele fala, adora falar, acompanha eu e Fernando em todas as reuniões de “negócios”, porque somos pessoas de negócio, ele é um pequeno gênio, mas diz que só a gente acha isso. Ana Julia e Amanda, nossa senhora, até choro. Elas são adolescentes e têm a mesma vida que a gente, entram em cena como gente grande. Em dezembro tiveram que botar a boca no mundo e falar alto, brilham cada vez mais lindas. Eu me lembro do primeiro dia de cada um, e do dia em que os outros se foram. Dor e alegria o tempo inteiro.

Dirigir gente aberta e disponível, na maioria das vezes, é fácil e prazeroso, e às vezes te faz chorar, gritar, e tentar fazer com que teu coração se abra por inteiro e que todo mundo possa ver, já que você não consegue falar. O limite entre o achismo e a visão ideal, o “ver o todo”, entender a melhor saída da cena, e dos movimentos internos, dos riscos que cada um corre. Além de diretora da cia, minha profissão de formação é a psicologia. Fiz uma formação em psicanálise, uma especialização também em psicanálise, e desde sempre o teatro anda junto comigo em todas as minhas pesquisas. Amo as pessoas. Ver o outro, entender o caminho, as amarras dos outros, e as minhas. Durante o último ano quis desistir, recomeçar, e não sabia como. Neste mês de dezembro tivemos reuniões definitivas, com questões profundas, com duas possibilidades apenas de respostas "sim" ou "não". E assim fomos no sim. Além da dor, além do amor. Existe o nosso desejo comum. Fazer teatro. Um dia o João me disse, “não sei se amo o teatro porque amo o amor que vocês têm pelo teatro ou se eu realmente amo o teatro”. Depois de um tempo ele entendeu que era o amor dele, a música na cena. Eu sabia disso desde a primeira vez que ele conversou comigo. Depois de assistir um espetáculo do Grupo Casa, ele subiu no palco, me encontrou na coxia e disse: “Você é a Ligia?”. Eu disse que sim e ele continuou: “eu sou músico, toco piano desde os 9 anos de idade, mas eu quero fazer isso que vocês fazem, como eu faço?”. E assim uma história se começa. Como todas as outras. Vi todo mundo nascer, e como é fantástico, ver cada passo, cada dor, cada luta, cada choro, cada alegria, cada construção, me formar a partir de todos eles. Somos alguns muitos, meu coração deseja sermos mais ainda. A Teuda, nossa Kombi, tá ficando pequena, precisamos de um ônibus.

Nosso embate com a gente mesmo é constante. Tenho lido muito, entendido outras mulheres no mundo como potência. Minha grande referência é Ariane Mnouchkine, diretora do Teatro de Soleil. Me faz acreditar que tudo é possível. Viramos o ano. Com ele novos objetivos, novos projetos, novo fôlego. Já que tudo é possível, vem aí: “A vida é sonho”. Somos todos por todos. E assim seguimos, felizes, exaustos, incansáveis, e com coragem. É preciso coragem. Obrigada Grupo Casa, por me desafiar a cada minuto. Minha vida é inventada. Que seja longa.  



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