dezembro 02, 2017

DO ATOR CONSCIENTE À EXISTÊNCIA

Por: Ligia Prieto.


Quando se resolve fazer teatro, fazer mesmo, não tem mais volta. O teatro existe no coletivo, insiste na vida para torná-la possível e, mesmo que sempre precise de defesa, só morrerá se for morto e não de velhice.

Isso tudo eu aprendi cedo. Mas que fazia doer, porque era um mergulho em si e no mundo, isso eu aprendi na prática diária dos últimos anos. A necessidade de se conhecer, de nominar seus próprios monstros, a psicanálise já havia me alertado. Me dando respostas? Não, pelo contrário, me apontando o risco da existência e o grande enigma do mundo, o desejo. O que eu desejo? De que desejo eu fui gerado? Quem deseja? O que deseja? Por que deseja? Ah, a vida o que é então? Um frenesi? Uma ilusão? Exatamente isso, e por isso faço dela o que eu bem entendo e resolvi fazer.

Há quatro anos sou diretora, produtora, administradora e atriz de um Grupo de Teatro. Depois de doze anos fazendo teatro, finalmente a maior coragem chegou. Fazer teatro exige coragem, mas fazer teatro de grupo, exige algo além de coragem, talvez uma super coragem. Mas nosso coração sorri quando Ariane Mnouchkine afirma que o teatro só se faz em grupo, significa que talvez esse seja um caminho possível. É isso que somos, um coletivo, um lugar de encontro, de crescimento, de medo, de luta contra a própria vaidade íntima e alheia. Nesse mundo vivemos os últimos quatro anos, e ainda viveremos muitos.

Antes disso, a questão principal da minha pesquisa infinita: a busca da consciência do ator. E neste lugar da consciência, a existência. Vou contar uma pequena história para que a gente possa se relacionar com mais luz. Eu e você que lê. Em 2013 iniciei um trabalho na Secretaria da Pessoa com Deficiência no Rio de Janeiro, como professora de teatro. Foi a virada. Sou formada em psicologia, tenho uma especialização em saúde mental e psicanálise, pela UERJ e iniciei uma formação em psicanálise na EBP no Rio de Janeiro, etc. Sem grandes currículos. Eu adoro o sujeito humano, barrado pela linguagem e afundado nos seus próprios abismos na busca de sua “felicidade”. Iniciei um trabalho de teatro com pessoas com deficiência. Entendi aí: o teatro é fundamental para dar existência.

Quando iniciei o trabalho o teatro ficava ali, naquele cantinho, quase não visto, sem sala fixa, sem material, não sei nem se na resistência, pois não posso dar certeza que ele existia, e para resistir é preciso existir. Consegui uma sala - era em outro andar, mas era para o teatro - era uma sala de dança, mas já era muito legal; depois consegui alguns materiais: nariz de palhaço, tecidos, fantoches, dedoches, máscaras, papéis, canetas, coisas divertidas e simples mas que nos propiciam um mundo novo. A SMPD apresenta um projeto muito interessante, deveria ter em todos os lugares do mundo. Lá, uma equipe multidisciplinar trabalha completamente interligada para o desenvolvimento das pessoas inscritas no programa. O teatro começou a fazer parte das reuniões de discussão dos casos clínicos, para que pudéssemos juntos pensar o teatro como uma ferramenta de desenvolvimento humano. E dia após dia eu me surpreendia. O contato consigo mesmo, um mergulho nos próprios medos, desejos, e um caminho claro para uma pergunta que doía: quem sou eu? Um sujeito assujeitado pela sociedade. Sem possibilidades. Sem futuro e sem presente. Até encontrar o teatro como ferramenta de existir. De descobrir em si mesmo a própria potência, a possibilidade da existência, de superar seus próprios desafios, como agente ativo da sua própria vida. Enquanto as criações de histórias, de personagens, de dramaturgias, de cenários, de figurinos iam nascendo e acontecendo, o sujeito começava ao mesmo tempo a criação de si mesmo: meus limites, meus desejos, meu texto, minha possibilidade, minha criação, meu eu. Junto com a equipe multidisciplinar, fomos entendendo o desenvolvimento daquelas pessoas envolvidas no projeto. Eram muitos. Eu ministrava as aulas na unidade da Rocinha e da Central do Brasil. Depois de alguns meses, passei para uma “gerência”, todos os professores de todas as outras unidades deveriam seguir este projeto de aula e pesquisa, e assim eu precisava, além de ministrar as aulas nas minhas unidades, também supervisionar e orientar as outras unidades. Fizemos muitas apresentações interessantíssimas.

No final do ano de 2013, precisei me mudar do Rio de Janeiro para Campo Grande – MS, devido ao falecimento de minha mãe (cenas de um próximo capitulo) e deixei este trabalho. Mas assim mantive o “método”, não gostaria de chamar de método porque não foi inventado por mim, ele surgiu ali, nasceu do encontro, mas é um reflexo de tudo que já passou no mundo, da história, de Brecht, de Stanislavski, de Grotowski, de Platão, de Aristóteles, de Freud, de Lacan, e de todos os outros. Mas ali existiu. A utilização do teatro como ferramenta de desenvolvimento. As turmas eram variáveis de acordo com a minha própria capacidade de comunicação: pessoas com paralisia cerebral tinham aulas particulares, e assim por diante. A gente existia. Foram muitos casos, e muitos exemplos, mas o foco deste texto não é ficar somente aqui.

Para todos. Pessoas com interesse em seguir no teatro como profissão, ou não. Pessoas que chegam às aulas de teatro por qualquer motivo que seja. O caminho dentro da pesquisa teatral é da existência. Da SMPD para a escola de teatro atual, a escola de teatro do Grupo Casa, o nosso grupo, o nosso coletivo, o nosso estilo de vida, pesquisa, crescimento, onde ministramos aulas de teatro. Todos os professores seguem a mesma estrutura: o caminho da existência. De maneira simples: o material de trabalho do ator é o seu próprio corpo, nesse sentido cabe ao ator um único caminho, a busca do autoconhecimento, para que assim domine tudo, seu corpo, sua voz, seus músculos, sua respiração, suas emoções, suas sensações, sua alma. Quanto mais se conhecer mais vai se conectar a si mesmo e se manipular. Veja bem que eu não digo que a falta de consciência não é bem-vinda, ou a loucura em si, espero deixar isso mais claro possível, antes que Artaud venha e me enterre em pouca idade ainda. Meus pensamentos vêm da minha insignificância mortal. Artaud, e outros grandes autores, atores, diretores, que viviam na loucura, eram gênios. Já que eu não tenho esse poder, eu preciso encontrar meus próprios meios para alcançar esses “momentos plenos”, completamente necessários ao artista. Nesse caminho é muito importante que eu me afaste da racionalidade e me aproxime da consciência. Até para que eu consiga fazer as escolhas dos meus gestos, dos meus caminhos de cena, da minha própria composição de forma mais verdadeira possível, e assim encontrar consistência. A possibilidade do ator criador. Tem um psicanalista francês que diz que o ponto certo do ator é entre a intimidade e a extimidade, conceitos para um próximo texto. Mas podemos brincar agora dizendo que a intimidade seja a verdade de Stanislavski e a extimidade seja o estranhamento de Brecht.

Talvez o contemporâneo já esteja nos apontando isso. Precisamos falar de nós, nos olhar. Estamos nos classificando no mundo atual de forma que só conseguimos fazer hoje devido às ferramentas tecnológicas que temos. Estamos sendo invadidos por classificatórios e rótulos, desde as doenças até os gostos pessoais, musicais, políticos etc. Tudo virou uma coisa só, e a intolerância nascida da vaidade e do grande ego toma conta.

O momento do contemporâneo talvez seja esse: descobrir quem eu sou. O que eu desejo? Qual caminho seguir? Amar ou não amar? Eis a questão. Olhar nos olhos e respirar, acreditar que é possível existir além das limitações impostas pelo que vem de fora.

O texto de novembro era pra introduzir o diálogo do ator consciente com a existência. Mas muitas coisas e muitos caminhos estão em mim, a dor da direção, a construção da atriz, as conquistas e as tragédias de um coletivo, o feminino da cena, sempre a existência, e nela o teatro. O teatro como “possibilita-dor” da vida. 


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