dezembro 02, 2017

A MÚSICA NA URGÊNCIA DO TEATRO, NA URGÊNCIA DA EXISTÊNCIA

Por: João Celos.


É preciso escrever, difícil iniciar, mas sem início não há meio então melhor que inicie. Vivo em um grupo de teatro. Em que todos gostam de escrever, se inclinam a poesia, e eu sou músico. Exato, arrogante, grosso, inevitavelmente adepto da verdade. Gosto das provas que a música me dá de que existe antes de nós. Me apaixono por isso. Me apaixono em perceber que se uma nota é produzida no ambiente, seus harmônicos, seus intervalos de quintas e terças, irão soar no espaço, e a partir dessa atração inevitável e física fazemos as consonâncias e dissonâncias. Me apaixono pela concepção de que as alturas sonoras são marcações no tempo que ultrapassam nossa percepção de tempo, e a partir daí se agudam até se tornarem ultrassons, até se tornarem luz, matéria, até se tornarem nós. Me apaixono pelo entendimento de que somos feitos de música – união de sons e ruídos – um fenômeno mais do que artístico, constitutivo da existência. E por isso me apaixona também a existência, também o teatro. Coexistir na música e no teatro tem sido minha peleja dos últimos dois anos, minha confusão e amor.

Com isso, o grupo de teatro. Vivo em um grupo. Trabalho, estudo, como, choro e me divirto com o grupo, e preservo minha solidão quando posso. Estamos constantemente atravessados pelas crenças, mentiras, dores e manias uns dos outros, e em meio a tudo, o teatro, que é o motivo e a certeza. Antes de mais, tenho 20 anos, me chamo João, estudo piano desde criança, participei de coral, estudo canto, toco violão também, acordeão, e preciso conduzir a construção da música dos espetáculos e a formação musical de um grupo de teatro. Digo preciso porque recebi a função sem ter noção alguma do que deveria ser feito previamente, sem ter a mínima certeza se daria conta, e quanto mais a necessidade aumenta, maior essa dúvida.

Entrei no grupo pela necessidade, a vida num grupo de teatro não era sonho, apareceu como pura oportunidade concreta e sem fantasia de viver a fantasia de se viver de arte. Fui posto como preparador musical, não havia tempo, eu era o único músico possível, e meu primeiro trabalho era afinar o grupo para cantar as músicas que entrariam na dramaturgia de uma saga de espetáculos, As Aventuras de Bagacinho, que iniciavam em novembro de 2015 no shopping Bosque dos Ipês. A partir daí um espetáculo diferente da saga a cada semana, meia dúzia de músicas novas a cada semana. Eu também entraria em cena, tocando as harmonias das músicas, cantando, e seria palhaço. Fui posto em cena pela necessidade, e virei palhaço pela necessidade. Não pela necessidade de sustento ou qualquer outra, mas por talvez perceber inconscientemente que esse era o único possível caminho de entender a arte como é, na sua urgência, na sua inevitabilidade. Mas a música que eu trazia como experiência e estudo não era suficiente à cena, as vezes oposta ao que era pedido. Eu traía à minha antiga e certa música a cada momento que tocava e cantava para o teatro, e aquilo me doía como o remorso de um pecado cometido. Todos os métodos sagrados e necessários à composição de uma música válida anteriormente eram ignorados e passados para trás, me pediam para desrespeitar a música, abusar do ouvido, criar efeitos não calculados e improvisos cegos, pular etapas, ignorar os pequenos detalhes e optar pela rapidez. O teatro profanava constantemente a música.

Minha experiência com coral orientou meus primeiros trabalhos vocais com o grupo. Mas não havia tempo. Ninguém estava ali para cantar, e sim para fazer teatro. Ainda assim, a música nunca tinha sido tão imprescindível. Percebi que a técnica existiria nos meandros, na medida do cabível, e deixei ao orgânico da prática constante nossa formação musical, mais por cansaço do que por escolha própria. Depois de dois anos percebo o avanço expressivo de todos nós, ainda que com todas as nossas presentes limitações, e com isso acredito um pouco mais na prática.

Nesse tempo de trabalho diário com teatro e música no teatro, digo que as questões frente à potência dessa união me são hoje tão grandes quanto a paixão pelas duas artes. Não em relação a simples presença tradicional de uma em outra, mas a coexistência de métodos e fins, que se sobrepõem, muitas vezes se contrapõem e parecem em alguns momentos até antagônicos. Existe em mim muitas dúvidas sobre o que é simplesmente sacralizado em música, e o que é música em si. Até que ponto posso romper a música, e ainda assim continuar acreditando em sua potência. No teatro coexistem diferentes discursos, que se juntam em harmonias e se afinam em diferentes dimensões. Não há protagonismo de vozes que não a própria teatralidade – aquilo que existe entre as linguagens. Como músico desenvolvo e me preocupo especialmente com essa voz do teatro, mas como é possível ter enfoque em uma linha melódica dentro do arranjo complexo que é teatro, como entender onde se inicia a criação de um discurso musical que será consequência e causa de todos os outros fenômenos teatrais, e, portanto, necessariamente incompleto em si?

Minhas experiências me conduzem hoje principalmente a evitar os preestabelecimentos, a buscar notar o diálogo dos discursos no fazer teatral e que impulsos e vibrações tiram do silêncio a música inevitável à cena. Estar sensível e aberto o suficiente para que o som surja dialogicamente na polifonia do acontecimento é o que me parece o certo.

Os desejos e vontades surgem a partir da necessidade. Me tornei músico da cena por necessidade e tive de tentar entender muitas coisas enquanto os fenômenos aconteciam na minha frente. Me apaixonei por essas necessidades, e agora elas nos impulsionam a um novo processo – a montagem da peça A Vida É Sonho – processo no qual as questões já surgem aos montes, e no qual as possibilidades de criação são latentes e ardentes. E que venham as necessidades!





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